Hermenêuticas do Feminino: Epistemologias, Experiência Religiosa e Crítica Social
DOI:
https://doi.org/10.7213/2318-8065.10.01.p01-04Abstract
teologia nasce da Palavra e, como nos lembra Tereza Toldy, é nas palavras que se joga o drama da exclusão e da libertação. Em A violência e o poder da(s) palavra(s), Toldy mostra que o cristianismo construiu, ao longo dos séculos, um cânone de poder: discursos que naturalizaram a subordinação das mulheres e sacralizaram hierarquias. Mas é nessa mesma linguagem, ferida e aberta, que florescem novas hermenêuticas. A teologia feminista emerge como resposta poética e política, onde a suspeita se transforma em libertação e a memória das mulheres se converte em lugar teológico.
Maria José Rosado-Nunes, por sua vez, analisa as ambivalências históricas da Igreja diante da modernidade. Em Direitos, cidadania das mulheres e religião, ela mostra como o catolicismo latino-americano participou da construção de uma cultura de direitos e de práticas libertadoras, mas manteve discursos essencialistas que limitaram a autonomia feminina. Sua leitura crítica nos interpela a pensar a fé não como tradição fechada, mas como diálogo vivo entre revelação e história.
Inspirado por essas autoras, este Dossiê 10 da Revista Caderno Teológico propõe uma travessia entre hermenêutica, espiritualidade e transformação social. Os artigos aqui reunidos formam três eixos que se encadeiam: 1. Fundamentos e reconstruções teológicas do feminino; 2. Experiência, espiritualidade e linguagem simbólica e; 3. Desdobramentos éticos, sociais e ecológicos.
EIXO I – Fundamentos e reconstruções teológicas do feminino
Abrindo o dossiê, Higor de Souza Mendes revisita o pensamento de Edith Stein em A concepção do ser mulher: Eva, Maria e o feminismo católico. O artigo combina filosofia fenomenológica e teologia espiritual, apresentando a mulher como sujeito de razão e transcendência. Entre Eva e Maria, Stein delineia uma pedagogia da interioridade, em que o feminino não é submissão, mas lugar de comunhão e liberdade interior.
Em seguida, Bianca Strücker, Noli Hahn e Alana Sartori, em Cultura patriarcal e o direito de resgate: uma análise do livro de Rute sob a óptica dos direitos humanos, propõem uma hermenêutica crítica do texto bíblico. O estudo evidencia como as leis do resgate e do levirato, concebidas para proteger, também perpetuavam a dominação masculina. Ao reinterpretar Rute como figura de resistência e agência, as autoras transformam a leitura bíblica em ato de desvelamento das estruturas patriarcais.
Fechando o eixo, Lucas Pereira da Silva Freitas, em Hermenêuticas do feminino em diálogo: uma koiné entre Gianni Vattimo e autores da Teologia da Kénosis, propõe uma leitura filosófico-teológica inovadora. A partir da noção de esvaziamento (kénosis), o autor identifica no gesto divino de autodoação um paradigma libertador para o feminine, não mais submissão, mas vulnerabilidade criadora. É um texto que insere a teologia feminista na arena pós-metafísica contemporânea, abrindo pontes entre fé, filosofia e ética.
EIXO II – Experiência, espiritualidade e linguagem simbólica
O segundo bloco desloca o foco da teoria para a vivência da fé, recuperando a espiritualidade como dimensão constitutiva da teologia.
Em Espiritualidade e mística cristã: reflexão sobre a experiência com Deus e a práxis cristã, Andréia Cristina Serrato e José Carlos de Oliveira refletem sobre o esvaziamento da transcendência em tempos de hiperatividade e fragmentação. Inspirados em Metz e Boff, defendem a mística como resposta à crise de sentido: uma espiritualidade enraizada na vida cotidiana e comprometida com a justiça. Sem experiência mística, alertam os autores, o cristianismo se arrisca a perder sua força transformadora.
No mesmo horizonte, A mística cristã primitiva: estudo das práticas mágicas na religião popular cristã da autora Ana Flávia de Almeida Figueiredo amplia a compreensão da espiritualidade cristã ao recuperar expressões sincréticas e populares dos primeiros séculos. A análise dos papiros mágicos cristãos revela uma fé encarnada, marcada por gestos materiais, amuletos, invocações e práticas rituais que uniam cura, proteção e sentido comunitário. Longe de ser mero resíduo “pagão”, essa mística expressa uma busca radical por contato com o divino em contextos de vulnerabilidade: escravos, estrangeiros e camponeses que, entre tensões com a ortodoxia, construíram modos próprios de viver a experiência cristã. O artigo oferece um aporte decisivo ao dossiê ao mostrar que a espiritualidade cristã sempre foi plural, corporal e profundamente situada.
Adriana Maria Simião da Silva e Renato Kirchner, em Os círculos de mulheres: espaço de partilhas, autoconhecimento e espiritualização, analisam as práticas de círculos femininos como expressão de espiritualidades emergentes. Ali, a escuta, o corpo e o vínculo se tornam mediações do divino. O texto une pesquisa bibliográfica e abordagem socioantropológica, mostrando que os círculos são escolas de espiritualidade e de reconstrução simbólica do feminino.
Luis Henrique Piovezan, em A literatura e o Concílio Vaticano II: a Igreja aberta à Cultura, desloca o debate para a relação entre teologia e arte. Partindo do aggiornamento conciliar, o autor propõe que a literatura — de Eça de Queirós a Machado de Assis — pode revelar tensões e verdades teológicas invisíveis. A arte literária torna-se espaço de revelação e crítica profética, ampliando a compreensão da fé como linguagem poética.
EIXO III – Desdobramentos éticos, sociais e ecológicos
O terceiro eixo leva o leitor à interface entre teologia, sociedade e mundo, explorando os frutos práticos de uma fé reinterpretada.
Em Papa Francisco e o papel da mulher: pelo reconhecimento, um encontro com a ternura, Diclei Manoel da Silva analisa a teologia do reconhecimento em diálogo com o magistério do Papa Francisco. A ternura, aqui, é elevada à categoria teológica: gesto que revela a face feminina de Deus e convoca a Igreja à conversão pastoral. O autor mostra como Francisco tensiona os limites institucionais da Igreja, ao afirmar o valor da escuta e da reciprocidade.
Mably Rosalina Fernandes e Claudia Carolina Guadagnin, em Gênero e meio ambiente: um diálogo necessário, retomam a conexão ancestral entre o feminino e a terra. Com base na crítica ecofeminista, defendem que a ruptura com o sagrado feminino levou à devastação ambiental e espiritual. A reconstrução dessa relação implica reconhecer que o cuidado — valor central da ética feminina — é também categoria teológica e política.
Encerrando o dossiê, Teologia feminista e hermenêutica crítica: leitura da Bíblia a partir das margens, Pedro Luís Macedo Dalcol, retoma a base hermenêutica de todo o conjunto. O texto propõe uma leitura bíblica feita a partir das margens — dos corpos racializados, das mulheres empobrecidas, dos contextos periféricos. Inspirado em Schüssler Fiorenza, Ivone Gebara e Nancy Cardoso, o autor destaca que a Palavra de Deus é viva apenas quando lida desde a vida concreta dos oprimidos. É ums reflexão forte, que recoloca a teologia feminista no horizonte da transformação social e da esperança escatológica.
Enfim, o Dossiê 10 da Revista Caderno Teológico apresenta um mosaico de vozes que partem de um mesmo clamor: restituir às mulheres o direito de interpretar Deus. Das releituras bíblicas às práticas espirituais, das tensões eclesiais às perspectivas ecológicas, este conjunto revela uma teologia em movimento: crítica, encarnada e plural.
Entre Tereza Toldy e Maria José Rosado-Nunes, delineia-se um horizonte comum: a teologia feminista como caminho de reconstrução simbólica e cultural. Ela não é apenas reflexão sobre o feminino, mas reconfiguração do próprio cristianismo, que aprende a falar novamente a linguagem da ternura, da justiça e da comunhão. Quando a Palavra é dita desde as margens, ela deixa de oprimir e volta a criar.
Nota editorial
Este número da Revista Caderno Teológico foi organizado com a intenção de reunir reflexões que ampliam o diálogo entre teologia, gênero e sociedade, reafirmando o compromisso da revista com a produção teológica crítica, plural e inclusiva. Agradecemos às autoras e autores pela generosidade intelectual e aos pareceristas ad hoc pela leitura cuidadosa e contribuições valiosas.






